quinta-feira, 14 de maio de 2009

Estudo da ERC: Os Públicos dos Meios de Comunicação Social Portugueses

Um estudo recente da ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) intitulado "Os Públicos dos Meios de Comunicação Social Portugueses", coordenado por José Rebelo, apresenta as principais conclusões relativamente às crianças e aos jovens:

As crianças e os jovens em Portugal, como noutras partes do mundo, crescem hoje em ambientes de ecrãs e numa profusão de acessos e usos a tecnologias que não tem comparação com os ambientes em que cresceram os seus pais e não terá sentido pensar, hoje, a sua relação com os meios clássicos da comunicação social (televisão, rádio, imprensa) sem considerar os meios digitais, de entre os quais a Internet. Isto é tanto mais relevante quanto, em Portugal e ao contrário do que acontece na maioria dos países da União Europeia (Hasebrink et al., 2008: 63) são as crianças que lideram nos usos dos novos media e que se constituem como os elementos mais avançados e conhecedores nas famílias, a este respeito.

Outro resultado que este estudo comparado sobre os acessos e usos da Internet por parte de crianças de 21 países europeus, do Projecto EU Kids Online, é que os pais portugueses parecem menos preocupados com as crianças mais novas do que com as mais velhas e mais com as filhas do que os filhos, em contraste com padrões encontrados na maioria dos países – aspectos que os resultados deste inquérito confirmam. Há indicadores claros de mudança de paradigmas nas relações com os media, entre os mais novos e os mais velhos, nomeadamente nas considerações sobre o saber em casa. Actualmente, as crianças e jovens crescem em famílias mais democráticas nas suas relações e estão no centro das decisões quanto à aquisição de equipamentos, independentemente do nível da escolaridade dos pais.

As actividades das crianças, os usos que fazem de meios de comunicação, os equipamentos dos seus quartos e as formas de regulação parental são diferentemente percepcionadas por pais e filhos. Na impossibilidade de saber, pela via de questionários extensivos, onde está a verdade destes números, eles sugerem contudo que a relação das crianças e dos jovens com os media tem múltiplas dimensões e contradições e que não se reduz a uma visão linear, de efeitos directos dos media sobre as crianças. Os próprios pais recusam ver esses efeitos nos seus filhos, salientando a sua própria intervenção mediadora enquanto pais. Essa mediação não pode deixar de ser considerada no contexto social, nas condições de vida das famílias e nos seus recursos, não só de tempo e financeiros mas também culturais. Como vimos, as próprias decisões quanto ao equipamento a colocar no quarto dos filhos e em casa configuram diferentes considerações sobre a importância dos media. Sobressai a fortíssima presença do televisor no quarto da criança, rodeado de uma panóplia de novos ecrãs onde, à programação dos canais abertos, se juntam os canais por cabo, temáticos, e as produções de uma indústria videográfica e informática imparável.

Se as famílias se constituem como um dos territórios fundamentais da socialização das crianças, um outro território aqui considerado de forma periférica é a Escola. De um modo geral, em Portugal, a Escola tende a ignorar os meios de comunicação social, que ficam à sua porta, e a actualidade dos media (nomeadamente dos audiovisuais) fica também fora da sala de aula, apenas “rompendo” quando ocorre algum acontecimento traumático. Mas a vivência das crianças na escola é também multifacetada. Vimos como os professores se constituem como parceiros quase ausentes na discussão das notícias, muito menos do que os pares e do que as famílias, e como a Escola se constitui como o principal local onde crianças referem encontrar informação sobre segurança na Internet.

Nestes contextos dinâmicos das famílias e nas formas de regulação que adoptam, por um lado, e nesta profusão de meios, formatos e conteúdos, por outro, que sentido(s) poderá ter a intervenção pública a diversos níveis, da regulação do estado às iniciativas de responsabilidade social das empresas de comunicação, passando pelas escolas e pelos movimentos sociais organizados?

Acreditamos que o principal desafio e responsabilidade, nas circunstâncias actuais e com algum atraso em relação a outros países desenvolvidos, é a promoção de ambientes de literacia mediática. A Carta Europeia sobre Literacia dos Media, um documento de 2006 proveniente da Comissão Europeia, identifica a necessidade de promover essas capacidades em “cidadãos de todas as idades”, tanto na análise crítica dos media como “no seu uso como meio de expressão, comunicação e participação no debate público”.

Mais recentemente, em Dezembro de 2007, a Comissão endereçou uma comunicação ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social e ao Comité das Regiões, onde começa precisamente por afirmar que a literacia mediática se está a tornar “gradualmente uma componente importante das agendas políticas europeias e nacionais nos sectores dos media e das comunicações”, e refere a obrigatoriedade de “relatórios que quantifiquem o nível de literacia mediática em todos os Estados-membros”.

Em Portugal, parece reinar o silêncio asfixiante sobre esta agenda, enquanto predomina um discurso optimista centrado no “choque tecnológico” e no seu determinismo. Não é fácil encontrar indicadores dos impactos dos investimentos financeiros em educação e noutros sectores de acesso e uso nas populações, numa continuidade de um certo ambiente de secretismo que caracteriza (ainda) a informação oficial. Os números apresentados carecem de ser contextualizados e o tema continua fora da agenda jornalística, um ano depois das entregas de equipamentos e quadros digitais em escolas ter sido alvo de notícia mais pela forma do lançamento do que pelo conteúdo dessa iniciativa.

Contudo, este já é em si um programa desafiante para Portugal, país com uma população adulta com baixa literacia em geral e onde vemos crianças e jovens a liderarem nos acessos e nos usos mais expressivos e produtivos dos media, como a sondagem nacional e os questionários distribuídos em escolas da Grande Lisboa mostraram. A literacia dos media deve ter lugar na escola e logo nos primeiros anos (incluindo os jardins de infância), adaptada às idades e interesses das crianças. Indo além das suas características técnicas, pode proporcionar ambientes de conversação e de produção de mensagens – do jornal e da rádio escolar aos pequenos filmes - que contribuam para um conhecimento mais informado e crítico sobre os conteúdos e os seus processos de selecção e de construção. Queremos com isto sublinhar que os sentidos experimentados nestes meios ultrapassam as dimensões cognitivas em sentido restrito e que devem ser também consideradas as dimensões lúdicas, estéticas e sociais, incluindo uma indispensável dimensão ética, relacionada com o respeito pela imagem dos outros. Esta actividade pressupõe a existência, no contexto escolar, de profissionais preparados e de um currículo que dê visibilidade e sentido a esta área. Mais do que uma linha proibicionista na relação das crianças com os meios de comunicação social, há que desenvolver a perspectiva da participação responsável e informada e da inclusão das crianças na vida comunitária.

Os meios de comunicação são muitas vezes mais considerados como ameaças do que como recursos e esta visão não é de hoje. Como diz Jenkins (2006), o foco incide mais nos perigos da manipulação do que nas possibilidades de participação, mais na restrição dos acessos do que no desenvolvimento de capacidades e propósitos pessoais.

Como decorre do Art. 17º da Convenção sobre Direitos da Criança, os meios de comunicação social – e, acrescentamos, as indústrias de conteúdos e os fornecedores de acesso aos novos media – têm uma responsabilidade social na produção e difusão de materiais que promovam o bem-estar das crianças e que a protejam relativamente a informação e materiais lesivos e ilegais. A auto-regulação dos meios de comunicação social já deu alguns tímidos passos neste sentido mas ainda há certamente muito a fazer. Este estudo revela bem a importância dessa intervenção, nos contextos económicos, sociais e culturais em que vivem as crianças e as suas famílias, muitas vezes marcadas por contradições entre o desejo de proporcionar “os melhores meios” aos filhos e os receios dos usos decorrentes.

A atenção e sensibilidade públicas que um estudo como este pode estimular junto da população e das suas vozes organizadas, será certamente um bom motor para dar eco e espaço a estas temáticas, envolvendo neste esforço toda a comunidade. Como dizia João dos Santos, que sabia ouvir as crianças, “a educação de uma criança é obra de toda a comunidade”.

Se o inquérito por questionário auto-administrado se revelou uma metodologia globalmente adaptada à idade das crianças e à auscultação dos seus pais, ficaram por explorar algumas questões de natureza qualitativa difíceis de exprimir por este meio. A combinação desta ferramenta com outras metodologias qualitativas (entrevistas, conversas, observação etnográfica de ambientes familiares, outras…) proporcionaria certamente informação mais detalhada sobre acessos, processos e usos/apropriações dos media por parte das crianças e a mediação familiar. Por outro lado, ficaram por inquirir as crianças com idade inferior a 9 anos e, como este estudo indica, elas já têm uma vivência dos meios de comunicação social que importa também ter em conta.

Neste sentido, aponta-se a necessidade de prosseguir o caminho agora iniciado, de prestar atenção às crianças enquanto público com características especiais.

Fonte: REBELO, José (Coord.) (2008). Os Públicos dos Meios de Comunicação Social Portugueses. Edição Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Lisboa.

Disponível em: http://www.erc.pt/documentos/Conf_08/EMCS/EMCS-parte6.pdf

Sem comentários: